08.04.23
Podia ser ontem
Enquanto as tuas mãos inchavam no sorriso da ausência
Das pobres janelas
E das portas
De todos os montes e vales
De todas as pedras
Em todas as árvores
Quando nem todos os pássaros
E podia ser ontem
Enquanto as tuas mãos mergulhavam nos lábios da geada
Entre vinhedos
Dos tristes milagres de Deus.
Acorrentado a este rio
De doirado silêncio
Quando descem sobre mim as nuvens tempestuosas
Que transportam o sangue derramado das tuas veias
Quando ainda ontem
As tuas mãos mergulhavam nas estrelas da noite
Embriaguez dos distantes carrosséis entre linhas
Dispersas sobre o mar.
Podia ser ontem
Mas ontem era dia de descanso
O derradeiro repouso
Quando pegas no último vinho
E o bebes
Veneno
Passaporte para o lunar destino.
E pobre
Este pobre menino
De poeta enforcado
A trapezista aposentado
Tão pobre
Tão…
Amado?
Quando ainda ontem
As tuas mãos eram límpidas como a Primavera
Como os gladíolos
Como as palavras quando se soltam dos lábios
Ressequidos
Mergulhados no ontem
Quando se fosse ontem…
Hoje
Tão pobre
De destino
Este pobre menino.
Podia ser ontem
E a ausência continuava na gabardine da insónia
Podia
E se fosse ontem
Uma chuva de lágrimas deixava sobre ti o silêncio
Quando ontem seria pouco
E de pouco em pouco
Aos teus lábios regressam as sanzalas
E os mabecos que ainda ontem
Brincavam junto a mim
Quando ainda ontem…
Desenhávamos canções no vento…
E corações na areia fina do Mussulo.
Podia ser ontem.
Não o foi porque dizem que a sexta-feira é dia de azar
Que todas as sextas-feiras um cadáver de sono
Acorda junto ao jardim
E ainda ontem andava por aí…
Em pequenas brincadeiras
Entre pequenos soluços
Quando ainda ontem
Das suas mãos
Recebia as palavras semeadas durante a noite.
E que seja hoje
E que seja amanhã
Porque não sendo ontem
Também não importa
Se foi ontem
Se poderá ser hoje
Ou qualquer dia
Mas se tivesse sido ontem…
Certamente levaria nas mãos toda a minha poesia.
Francisco
08/04/2023