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francisco luís fontinha

Nunca vi o mar, A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu... francisco luís fontinha.

francisco luís fontinha

Nunca vi o mar, A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu... francisco luís fontinha.


15.01.23

No quarto ao lado, o senhor Álvaro de Campos preocupado com o Esteves à porta da Tabacaria e com a pequena se come ou não come os chocolates, porque comer chocolates é a melhor coisa do mundo; metafisica pura.

No meu quarto, nada.

Nem o Esteves à porta da Tabacaria, nem a pequena a comer chocolates, no meu quarto apenas tenho uma jarra com flores, flores muito velhas, flores sem nome, flores…

No meu quarto, ao lado do quarto do senhor Álvaro de Campos, em frente à Tabacaria, vejo-me no espelho do guarda-fatos, e não vejo nada, nem vejo o mar, nem vejo os filhos do mar e os irmãos do mar e os irmãos dos filhos do irmão do mar, no meu quarto, este quarto,  oiço o senhor Álvaro de Campos, oiço-o e percebo que do outro lado da rua, da minha rua, rua que nunca tive, porque nunca tive uma rua na minha vida, percebo que na minha rua há um gato, o Alfredo, um gato negro com uma estrela branca no peito, neste quarto, no meu quarto, o Alfredo olha-me e eu olho-o, e a única diferença entre o Alfredo e o crucifixo pendurado na parede, é que ambos gostam de mim; ao menos isso.

No quarto ao lado, neste quarto, este meu quarto, tenho sentado na cama um Pacheco descontente com a vida, descontente com o senhor Álvaro de Campos, descontente com todos os chocolates e com todas as pequenas que comem chocolates; quer lá saber o Pacheco dos chocolates do senhor Álvaro de Campos, enfim sós, ambos, os dois, os três, os quatro, nada.

No quarto ao lado do senhor Álvaro de Campos, o meu, o meu quarto, há uma janela virada para o Oceano, uma janela de sono, uma janela com lábios de espuma e nos olhos traz as estrelas deitadas fora pelo senhor Álvaro de Campos, coitado, coitado dele e de mim, coitado…

Poiso a cabeça no teu beijo, deixo-me ficar por lá e por cá, levanto a cabeça, poiso a cabeça sobre o teu seio direito, não porque o teu seio direito seja mais belo de que o teu seio esquerdo, mas porque o teu seio direito está perto da janela virada para o Oceano, beijo-o ferozmente, beijo-o como se apenas tivesse segundos de vida e fosse esta a minha despedida, depois abro a janela, lá fora começa a erguer-se o nosso último pôr-do-sol, pego nele, prendo todos os barcos ao pôr-do-sol, depois, depois acaricio o teu seio esquerdo, e puxo todos os barcos para este pobre quarto, ao lado do quarto do senhor Álvaro de Campos.

O Pacheco está cá, não se importa se eu beijo o teu seio direito, não se importa se eu acaricio o teu seio esquerdo e tão pouco se puxo todos os barcos para dentro do quarto.

Tão pouco se importa se eu poiso a cabeça no teu beijo, quer lá saber o Pacheco do teu beijo…

Abro as gavetas que há em mim, deito lá os barcos e adormeço-os; tão felizes que eles estão, tão felizes, meu amor.

Beijo o teu ventre, e com o rio que trago nas mãos, um rio sem nome e muito pequenino, escrevo todas as palavras do amanhecer,

Coitado, coitado do senhor Álvaro de Campos, coitado,

E não sabíamos que o crucifixo nos olhava.

Coitado do Pacheco, coitado…

Tão tristes, tão tristes estes barcos dentro das minhas gavetas, muitas, poucas, gavetas, gavetas onde escondo o silêncio do décimo terceiro andar.

Desenho no teu peito, desenho no teu peito um quadrado, um círculo, desenho no teu peito a primeira manhã de Inverno, na terceira rua, vire à esquerda, à esquerda do teu seio direito, uma nuvem, um silêncio, o beijo que se esquece no teu doce seio direito.

À porta da Tabacaria, o Esteves, coitado do Esteves. Coitado.

Coitado de mim.

Coitado do Pacheco. Coitado dele.

Coitado de mim.

E coitada da pequena que tem de comer os chocolates. Coitada ela.

Coitado de mim.

Coitada.

Coitada dela.

Um grito. A voz alicerça-se às tuas mãos, mãos finas e débeis, mãos de árvore ensonada, mãos que também elas, também elas, elas gritam, gritam, gritam como gritam os teus uivos nas vidraças desta janela, e sabes meu amor, vivemos neste complexo Universo criado por Deus, Deus todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, pai do Alfredo, que num ápice resolveu descansar ao Domingo, mas ao Domingo já não há descanso de pessoal, ao Domingo, que o Domingo seja a primeira canção da manhã.

Poderia ser, não o é, mas enquanto o teu seio direito é loucamente beijado, os meus lábios caminham em direcção ao sono. Fumo um cigarro. Olho-te nua, perdida nas minhas mãos… e todos os corpos ressuscitam ao terceiro dia.

Nos dedos, finos, magros, na ponta dos dedos uma gaivota, uma árvore, os suspiros do senhor Álvaro de Campos, os gritos do senhor Pacheco, gritos, gritos, urros, gemidos, porra, foi bom, foi maravilhoso, um poema, um adeus.

 E enquanto a pequena come os chocolates, tu, meu amor, tu escondes-te também, tal como os barcos, numa das gavetas que há em mim.

Coitado do senhor Álvaro de Campos.

Coitado do Pacheco.

Coitada da pequena que deixou de comer os chocolates.

Coitados.

Coitado de mim e do crucifixo que sempre nos olhou; tenho pena…

E o que pensará este crucifixo enquanto beijo o teu seio direito?

 

 

 

 

 

 

Alijó, 15/01/2023

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

...


15.01.23

“come chocolates, pequena, come chocolates… olha que não há coisa melhor no mundo de que comer chocolates…”

Coitado do senhor Álvaro de Campos, como se não houvesse coisa melhor no mundo de que comer chocolates,

Olhe, por exemplo, fazer amor com a mulher que se ama, abraçar a mulher que se ama, olhar os olhos da mulher que se ama, olhar as estrelas que a mulher que se ama semeia no nosso olhar,

Coitado, coitado do senhor Álvaro de Campos,

Olhe, por exemplo, dar um tiro nos miolos aos vinte e seis anos como o senhor Mário de Sá-Carneiro,

Ou…

Tanta coisa, coisas boas, de que comer chocolates.

 

 

 

 

Alijó, 15/01/2023

Francisco Luís Fontinha


30.12.22

Se Deus quisesse

Hoje era sábado

Amanhã seria domingo

Ontem

Ontem seria quinta-feira

Porque às sextas eu não posso

Porque à sexta estou muito ocupado

 

Se Deus quisesse

Não havia guerra no Mundo

E oiço-os em coro (ó palerma, Deus não tem culpa da guerra)

Pois

Pois

Se Deus quisesse não fazia homens estúpidos

Imbecis

Gananciosos…

Os que fazem a guerra

 

Se Deus quisesse

Os pássaros usavam óculos

E motores a jacto

Viam melhor nas curvas

E nunca se cansavam

E já agora…

Rodinhas para deslizarem no pavimento

 

Se Deus quisesse

Havia todas as quintas-feiras

Pelas dezassete horas e trinta minutos

Sessões de Poesia no Jardim Doutor Matos Cordeiro

Mas…

Mas como este Deus é muito estúpido

Nem há poesia no Jardim

Nem há Jardim da Poesia

Nem há poemas

Nem há nada

(há bombos e que mais querias tu?)

 

Se Deus quisesse

Se Deus quisesse só chovia às terças e às quintas e aos sábados

Às Segundas e às sextas

Tínhamos sol aos quadradinhos

E ao domingo

Ao domingo temos moelas e churros

E descanso semanal do pessoal

(e oiço… é uma dose de quitetas para a mesa junto à televisão)

 

Se Deus quisesse

Todas as crianças eram felizes

Nenhuma criança tinha fome

Não é que Deus não queira

O problema é que Deus fez pais e mãe imbecis e estúpidos e tudo o mais

Como os que fazem as guerras

Como os que matam as crianças que querem ser felizes

(as calças que me deram hão-de ajusta-se ao corpo… AL Berto)

 

Se Deus quisesse

Ninguém morria

Não é que Deus tenha mão na morte

Mas em todo o caso…

Podia dar um jeitinho a uns

E um empurrãozinho a outros (aos filhos da puta, filhos da puta para os filhos, filhos da puta para os pais, filhos da puta para a mulher, filhos da puta para o Universo, esses podiam morrer todos)

(eu morrerei, ele morrerá, depois morrerá a placa onde está escrito Tabacaria… ai meu grande senhor Álvaro de Campos)

 

Seu Deus quisesse

Ai se Deus quisesse

Quisesse ele ser

Que ele seria

Não

Às sextas não posso

Se Deus quisesse

À noite podia haver sol

E de dia

E de dia haver luar

(grande estúpido este, então não era só trocar o dia pela noite?)

Às sextas estou muito ocupado.

 

 

 

 

Alijó, 30/12/2022

Francisco Luís Fontinha

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