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Francisco Luís Fontinha

Blog do poeta e artista plástico Francisco Luís Fontinha.

Francisco Luís Fontinha

Blog do poeta e artista plástico Francisco Luís Fontinha.


29.04.23

Vou contar-te uma história.

Uma história?

Sim, uma história…

Há muitos anos,

Muitos?

Sim, muito, muitos…

Havia um menino, o menino dos calções, que desenhava no mar barcos em papel e tinha no tecto onde dormia, estrelas, estrelas que falavam,

Que fixe, estrelas que falavam!

As estrelas falam?

Nem todas, estas sim.

O menino passava as tardes debaixo da sombra das mangueiras a sonhar, sonhava que um dia, um qualquer dia, voava, que um qualquer dia todo o mar era só dele, sonhava, sonhava muito,

O que é sonhar?

Sonhar…

Sonhar é vestir-se de pássaro, e

Voar.

Sonhar é vestir-se de pássaro e voar sobre a cidade, quando a cidade, toda a cidade, está escondida no cacimbo, sonhar é vestir-se de pássaro e voar em cada manhã que acorda, quando o sono já dorme,

Também posso vestir-me de pássaro e voar?

Sim, claro, claro que sim… e deves.

Um dia, o menino dos calções e das estrelas em papel, um qualquer dia, descobriu uma caixinha muito pequenina, muito

Muito, muito?

Sim… muito pequena, e nesse dia, um qualquer dia, tentou abrir a caixinha, tentou, tentou… até que consegui,

O que tinha a caixinha?

Olha… um coração,

Um coração?

O que é um coração?

Bem…

Para mim, que estudo engenharia mecânica e que nunca serei engenheiro, o coração é uma bomba, apenas isso, uma bomba que não se cansa de trabalhar, noite e dia, dia e noite, até que um dia, qualquer dia, pára. Para outros, o coração é amor,

O menino pegou com muito jeitinho no coração, olhou-o como se olham as flores, com muito cuidado (olha, nunca trates mal as flores)

Porquê?

Porque as flores também sofrem… e precisam de amor e carinho, tal como as estrelas que falavam e que brincavam todas as noites no quarto do menino dos calções e das estrelas em papel,

E enquanto o menino fazia festinhas no coração, este… este sorriu-lhe e disse-lhe

Olha, gosto muito de ti.

O menino não queria acreditar, e desde então, até hoje, o menino tinha sonhos, vestir-se de pássaro e voar…

O menino acreditava, que um dia, um qualquer dia, o mar lhe entraria pela janela, e o levava para muito longe, onde outros meninos, também eles com calções e que tinham estrelas em papel no tecto do quarto e que também elas, como as do outro menino falavam, seria sempre o menino dos calções,

E hoje, ainda é o menino dos calções?

Não, não…

Com os anos, o menino deixou de se vestir de pássaro e de voar…

E a cidade que se escondia dentro do cacimbo?

Está lá…

Está lá, muito longe… tal como as asas do menino dos calções e das estrelas em papel.

Nunca deixes de te vestires de pássaro e voar…

 

 

 

 

Alijó, 29/04/2023

Francisco Luís Fontinha


08.10.22

Meu querido Fernando,

 

Atravessaste o rio Congo sem que ainda hoje perceba porque o fizeste. Porque te escondias, meu querido Fernando? Dos pássaros, como eu hoje, das fotografias que trazias na algibeira e que nessa altura ainda não tinhas a minha? Ou escondias-te apenas do silêncio…

Sabes, meu querido Fernando,

Levavas-me a olhar os barcos gordos que descansavam no porto de Luanda, pegava na tua mão e sentia-me o menino dos calções mais feliz de todos os meninos dos calções, depois, entre pedaços de silêncio, perguntava-te porque…

Porque choram as acácias, pai?

Dizias-me que tinham sono, dizias-me que era devido à distância entre a lua e a terra, mas meu querido Fernando, nunca me disseste que as acácias choravam porque estavam tristes, porque estavam tristes, meu querido Fernando. E apenas muitos anos depois percebi o que era a tristeza,

Voavam como ninguém. Manhã cedo pegavas na Bedford e passeavas-te pelos musseques em busca de não sei o quê, tal como eu hoje, tal como eu ontem, tal como eu amanhã, mas nunca percebi porque atravessas-te o rio Congo em direcção ao nada,

Fugias de quê, Fernando? Das acácias, meu querido?

Lembras-te Fernando, quando cismei que queria escrever na tua carta de condução e poisaste devagarinho a tua mão no meu rabo, mas sabes meu querido, teimoso como sou, teimoso como era, de nada serviram as tuas palmadas, porque o que eu queria mesmo era escrever na tua carta de condução.

Depois comecei a rabiscar nas paredes do quarto, da sala, casa de banho e afins; tudo o que fosse parede, o menino dos calções desenhava, deixava a sua marca. E ainda hoje, meu querido, e ainda hoje…

Os pássaros partiram e levaram todos os barcos gordos, dos caixotes em madeira, sobejaram apenas algumas letras em tinta encarnada onde se podia ler PORTUGAL; e de Portugal enviamos um grande beijinho para todos, e uma linguiça para não se esquecerem dos sabores da nossa terra.

E sabes, meu querido Fernando, nunca entendi porque atravessaste o rio Congo em direcção ao nada, do que fugias, meu querido?

Das lágrimas das bananeiras? Da tristeza? Das acácias?

E havia sempre um pedaço de papel poisado sobre a mesa. Havia sempre um barco encalhado dentro de mim, dentro de ti, dentro dela…

Barcos, meu querido. Barcos.

A Bedford engasgava-se, o avô Domingos passava horas a passear um velho machimbombo pelas ruas de Luanda, a mãe passava as tardes a construir papagaios em papel e eu, o menino dos calções, passava as tardes a fazer vestidos para o meu grande amigo chapelhudo. Mas, meu querido Fernando, do que fugias? Como eu…

Atravessaste o rio,

Tínhamos medo das acácias, tínhamos medo do sono que o cacimbo provocava em nós e nos transportava para as pequenas sílabas do capim envenenado pela saudade,

E anos mais tarde, como tu, meu querido Fernando, fui obrigado a mentir-te, fui obrigado a dizer-te que estava tudo bem, mas não estava, meu querido, como poderia estar se já tinhas a morte suspensa nos ombros. Menti-te, depois fui obrigado a mentir à mãe, pela mesma razão,

Desculpa meu querido, desculpa ter-te mentido, mas foi melhor assim,

Olhava-te como quando me levavas a ver os barcos gordos, só que tu te afundavas aos poucos, e os barcos gordos dançavam sobre a ondulação marítima. Minutos intermináveis que pareciam dias, cigarros, cigarros, cigarros de mentira.

E enquanto te afundavas no Oceano da dor e das chagas que alimentavam o teu corpo, recordava as manhãs de Domingo junto aos barcos gordos, recordava a Bedford amarela, de musseque em musseque, e ao longe, o rio Congo.

Depois, desapareceste entre as nuvens. E nunca mais te vi.

Sabes, meu querido Fernando, nunca percebi porque atravessaste o rio Congo, mas percebo hoje porque trazias na carteira a fotografia da avó Valentina e a minha; e mentia-te. Escrevi a mentira em vós para enganar a saudade; e claro que não estava tudo bem.

Como poderia estar tudo bem se os barcos gordos hoje são apenas sucata e pedaços de limalha.

Porquê, meu querido?

Porquê as acácias?

E dentro dos cigarros em metástase, ouviam-se as lágrimas das tardes junto ao teu leito; desculpa a mentira, meu querido; mas acredita que estava tudo bem.

Tudo bem, como hoje.

 

 

Alijó, 08/10/2022

Francisco Luís Fontinha


27.09.22

Pergunto a este livro que me observa como se eu fosse uma abelha poisada na flor proibida, o que é o amor. E à fotografia onde habitam os meus pais, questiono-a se sabe o que é a paixão…

E tanto aquele livro, e tanto aquela fotografia, nada sabem sobre o amor e sobre a paixão.

Talvez se lhes perguntasse o que são as misérias do ser humano, ele e ela me respondesse…

Porque choram as acácias, pai?

Talvez me respondessem que já nascemos miseráveis, e como miseráveis que nascemos, nunca poderemos amar, nem tão pouco respirar a neblina da manhã. E enquanto esperava pela resposta do meu pai, nasci; nasci num Janeiro recheado de sol e de muito calor, sem que ainda hoje perceba porque choram as acácias.

Como também não percebo porque choram os pássaros, porque choram as árvores, porque chora o mar e o luar, porque choram as crianças, quando estas, deveriam pincelar sorrisos em cada manhã.

Depois, abri os olhos e vi no tecto da maternidade o mar; tinha sido a minha mãe que trouxe um pedacinho do Mussulo porque já suspeitava que eu

Talvez amanhã acorde.

Que eu pertencia a uma espécie de algas e que um dia seria apenas húmus e passaria o tempo a semear palavras nas planícies do sonho.

Ora, como sonhar é proibido por decreto Real e as palavras são apenas palavras, sombras, rectas paralelas que dizem que só se encontram no infinito, posso afirmar que sou apenas um poema que ninguém lê, mais um poema em direcção ao abismo.

E depois de abrir os olhos, de ver o mar aprisionado no tecto da maternidade, pequei na mão da minha mãe e levei-a a ver o capim que nunca ninguém percebeu de onde vinha aquele cheiro inconfundível depois das chuvas; que saudades…

Das acácias?

Daquele livro que me observa, daquela fotografia que me olha, e atrevo-me a dizer que são as únicas coisas que me observam; como aquele lindíssimo olhar que me seguia enquanto eu passava transportando uns calções coloridos e as sandálias de couro que ainda hoje sonham com o cacimbo pela manhã.

Porque choram as acácias, pai?

Pergunto a este livro que me observa como se eu fosse uma abelha poisada na flor proibida, o que é o amor. E à fotografia onde habitam os meus pais, questiono-a se sabe o que é a paixão…

E deparo-me que este livro é apenas um livro, e que esta fotografia não tira os olhos de mim, desde que nasci num Janeiro recheado e sol e de muito calor.

Que lindo, mãe…

Que lindo é o mar!

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 27/09/2022


08.07.22

Éramos só nós. Trazíamos no dorso a triste enxada da saudade, quando logo pela manhã, aos Domingos, íamos visitar os barcos, que após uma longa noite de sono, aos poucos, acordavam como acordam as palavras do poema quando este, depois de zarpar do cais, se abraçava à baía que hoje, muitos anos depois, é apenas uma lágrima de sangue.

No Mussulo, escrevíamos na lápide areia branca as palavras envenenadas que só o silêncio consegue ressuscitar, após o almoço, um barco de espuma erguia-se da montanha do sono, aqui e ali, sabíamos que os meninos de calções, aqueles que sobreviveram à noite, começavam a voar em direcção aos sonhos.

São as lágrimas, quando o teu sorriso é uma tela pincelada de Inverno, como a nobre e labirinta geada que após o luar começava a poisar nas nossas mãos e, do teu rosto, os pássaros sabiam que sobre as árvores, que sobre as marés infiéis dos distantes musseques, os velhos ditadores, um dia, morreriam de tédio; amém.

Éramos só nós, trazíamos na algibeira a revoltada fome que emergia das tristes mangueiras que depois das chuvas, o cheiro da terra se impregnava nas roupas como dentes caninos da solidão; éramos só nós. Éramos só nós quando o barco começou a distanciar-se de uma cidade engolida pelo sono, que após passar a linha do equador e, em pequenos engasgamentos, a orquestra limitava-se a escrever na espuma, as sílabas da inocência.

São as lágrimas, quando o teu sorriso é uma tela pincelada de Inverno, são as lágrimas que guardo no peito, as tuas lágrimas das manhãs de cacimbo.

 

 

Alijó, 7/07/2022

Francisco Luís Fontinha


03.07.22

Depois, tínhamos de inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar pequeníssimas flores em papel, diga-se; tínhamos trazido da antiga ilha da solidão todos os leitos do amor proibido. Nas ruas da cidade, ouviam-se os gritos dos cacilheiros que durante o dia transformavam o tejo em pequenas estradas de transeuntes e, sob o viaduto em Cais do Sodré, putas finas guerreavam-se por cinquenta escudos.

O sono, que de algibeira em algibeira, de lapela em lapela, desenhava-se no pavimento lamacento em pequenas vozes sinusoidais e ao fim de alguns gritos e gemidos, acabava sempre por regressar a uma Belém envenenada pelos putos em busca de sexo e depois de alguns escudos, escondiam-se rio adentro como que crianças em fuga da literatura que nesta ou naquela rua, se vendia a preço de saldo.

Uma noite mergulhei no poema da saudade, acreditando que depois do sono, acordarias sobre as lâminas do medo, mas mal visto, nada poderia na altura vaticinar que as janelas do teu olhar, hoje, sejam apenas cacos e pequenas migalhas.

O poema, às vezes, enquanto o poeta fumava cigarros de luz, mergulhava no rio e, ao longe, na varanda de um paquete que começava, aos poucos, em pequenas manobras, a aproximar-se de terra, mergulhava e só voltava depois de longas horas de espera, onde cadeiras e mesas já dormiam.

Hoje, ainda hoje, percebo que o poeta que sentado na margem do rio fumava cigarros de luz e o menino que na varanda do paquete via uma cidade imensa a entrar-lhe olhos adentro, eram um só; eu.

Anos depois, a cidade transformou-se num imenso sono de meninos em calções, sobre a mesa, o punhal com que ela numa noite inventada para a ocasião, espetou no peito do poeta, que ontem, sabia onde habitava o velho poema, e hoje, percebe que esse velho, que às vezes, vestido de marinheiro, pede esmola no musseque, deixou de pertencer aos jardins floridos do sonho.

Bebiam-se shots de fumo que apenas o cacimbo sabia onde se escondiam, depois do sexo, porque a cidade, aos poucos, começava a desaparecer do espelho tricolor da madrugada; e depois da chuva, o cheiro intenso da terra queimada. Levantava as mãos a Deus e agradecia por mais um dia que tinha terminado, e ele, ainda, mesmo a muito custo, se encontrava vivo e de boa saúde.

Depois, o velho poeta morreu numa noite de orvalho, mas deixando de acreditar no desejo, sabia que as margaridas que brincavam no jardim do sono, um dia, regressariam a mim. E hoje guardo com amor a pequena sílaba que ele me deixou de recordação e em testamento.

Depois, tínhamos de inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar pequeníssimas flores em papel, e mesmo assim, o puto trocava notas de cem escudos por ninharias que hoje habitam a casa das abelhas em flor.

E sempre que ele cerrava os olhos, via o imenso mar a entrar musseque adentro como o paquete, em pequenos roncos, atravessou o tejo até ao cais de desembarque e desfaleceu sem que ninguém o tenha, até hoje, ressuscitado.

Depois, morreste-me.

Depois, morri nas tuas mãos.

E sempre que invento o sono, vejo um musseque a entrar dentro do meu corpo como se fosse uma flecha envenenada, como se fosse um poema em delírio.

 

 

 

Alijó, 3/07/2022

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