Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

francisco luís fontinha

Nunca vi o mar, A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu... francisco luís fontinha.

francisco luís fontinha

Nunca vi o mar, A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu... francisco luís fontinha.


03.06.23

348360828_1439581743485085_2105732333217300849_n.j

Deste silêncio pouco

Deste pouco nada

Ainda me sobram algumas palavras

Umas boas

Outras

Outras muito parvas

E muitos nadas.

 

Dos nadas

Todas as minhas palavras

E hoje a noite

A noite

Não a minha noite

Mas hoje a noite está triste

Já me atirou com lágrimas…

Com sorrisos de fúria…

Nem uma estrela para olhar

Ou

Outras…

Pedir um desejo.

 

E o que posso eu desejar

Que já não tenha desejado

Escrito

E desenhado

No entanto

Desejo

Muito

Não morrer de cancro.

 

 

 

Francisco

03/06/2023


27.03.23

Algures, 27 de Março de 2023,

Meu querido,

 

Provavelmente, quando leres estas minhas palavras, já não estarei entre os vivos e, todo o meu sofrimento terá terminado.

A Francisca, desculpa, meu querido, desculpa… pois, não sabes quem é a Francisca.

A Francisca, a minha filha, já está no terceiro ano de engenharia computacional (não sei a quem ela sai)… vê lá, como o tempo passa, como o tempo voa. Como o tempo voa… meu grande amor.

Sei que brevemente irei partir, sem que te tenha contado toda a verdade, também não sei a razão de te ter ocultado (sim, meu querido, tu, tu és o pai biológico da Francisca), e só agora, que vejo o final do túnel e a luz… é que ganhei coragem de lhe contar; ficou furiosa comigo e julgo que me vai odiar eternamente; tal como tu, talvez… me irás odiar eternamente, mesmo sabendo que tu, meu grande amor, és incapaz de odiar o que quer que seja. Preferes sofrer de que odiar.

E sabes, meu querido, o meu maior receio é que ela nunca venha a procurar-te, gostar ou amar-te; tão teimosa que ela é, mas tal como tu, que és incapaz de dizer a alguém que a amas ou gostas, também ela, também ela é assim…

Peço-te perdão, por tudo.

Recordo os livros que líamos em conjunto, recordo as palavras que me escrevias, e sim, meu querido, as tuas palavras faziam-me sentir tão especial, tão segura… tão… tão amada como nunca o fui. A minha vida foi um erro, um erro que paguei muito caro e que talvez esta maldita doença seja o castigo de Deus por todo o mal que te fiz.

A nossa filha está impossível. Quase não quer falar comigo, não sei se é devido ao meu estado ou ao ter que encarar a verdade; que tu és o pai dela.

Lamento, mas a Francisca nem o teu nome quer ouvir…

Mas peço-te, meu querido, peço-te que tentes conversar com ela, e aviso-te já que não será fácil, pois além de teimosa, ela é também muito orgulhosa; a quem é que ela sairá!

Se eu tivesse forças, juro-te pelo todo o amor que sempre tive para contigo… juro-te que me suicidava, mas já nem forças tenho, neste momento sou um vegetal à espera de voar… voar em direcção ao mar, ao mar que tu tanto amas.

Perdoa-me meu querido, perdoa-me por tudo.

 

Desta que nunca te esqueceu,

 

 

Até um dia, meu querido.

 

(ficção)


18.08.22

Lamento muito, mas o senhor tem cancro.

- Não lamente, doutor, porque eu só quero voar!

Voar?

- Sim, doutor, voar em direcção ao mar…

 

Desciam as nuvens sobre a aldeia quando uma pincelada de luz poisou sobre o silêncio e na despedida, no final da tarde, ouviam-se os primeiros gemidos dos gonzos enferrujados da insónia, depois, percebemos que tínhamos acordado dentro de um cubículo desabitado e que antes de nós, pelas frestas que nos olhavam através das tristes paredes, tinha pertencido ao poeta suicidado.

- Morreu de quê, doutor?

Enforcou-se nas palavras…

E das palavras se alimentou durante mais de quarenta anos, até que numa alegre tarde de Inverno, junto à lareira, percebeu que essas mesmas palavras eram o veneno invisível que todas as manhãs acordava a seu lado,

- Mas… doutor, eu apenas quero voar… sim, voar em direcção ao mar…

E percebeu que além das palavras, e percebeu que além dos livros, e percebeu que além da doença, tudo em comparação com a possibilidade de voar, em direcção ao mar, eram apenas pequenas sombras que todas as noites dormiam sobre o cacimbo da infância.

E um dia, dos calções, acordou a luz.

- Que descanse em paz,

Como se a morte não fosse o eterno descanso de duzentos e seis ossos e trinta e dois dentes. Mas ele, teimoso, apenas queria voar em direcção ao mar, e que desciam as nuvens sobre a aldeia quando uma pincelada de luz poisava sobre o silêncio, até que uma pequena lâmina de saudade se abraçava a ele, como se a morte não fosse o eterno descanso da puta da pesadíssima enxada da vida,

- Barcos ao fundo.

Silêncios ao alto.

E entre apitos doirados, socalcos e vinhedos, o velho comboio quase a merecer a tão desejada reforma, dançava ao som do pôr-do-sol como se fosse um menino a brincar nos pequenos charcos após as chuvas endiabradas das manhãs de intenso calor. E ele, ainda sentado sobre uma pausa de cansaço, perguntava-me,

- Falta muito, doutor?

E claro que não, claro que não… estamos quase.

- Não lamente, doutor, porque eu só quero voar!

Voar?

- Sim, doutor. Voar como voam os sonhos nas mãos desejadas do sono.

E que do sono se faça a luz; segredava-me ele enquanto vestia as asas silenciadas pelas tempestades de areia numa qualquer longínqua praia em que apenas os pássaros podiam dormir antes de acordar o luar.

- Sim, doutor, voar em direcção ao mar…

 

 

 

Alijó, 18/08/2022

Francisco Luís Fontinha


19.06.22

Assim que acordávamos, ouvíamos o sono que regressava da tempestade deixada ao abandono durante a noite; o cabelo tinha-se-lhe esvoaçado, como as árvores quando se despem para dormir.

O sono levava-a e trazia-lhe o desconsolo de viver acorrentada a uma sombra que alguém tinha trazido da longínqua Angola, na algibeira do avental, algumas palavras despregadas do uivo dos mabecos envenenados pelos sonhos de uma madrugada recheada de pequeníssimos papeis onde habitavam frases de revolta e agonia.

Ouviam-se os pássaros nas ardósias manhãs de Verão, junto ao mar, ou mais longe do que isso, os barcos de cartolina regressavam de mais uma viagem ao infinito; as equações do sono também, por vezes, se faziam acompanhar pela solidão do capim onde se escondiam algumas gaivotas que procuravam as cinzas da tarde. Sabia que um dia, também o seu próprio cabelo, seria a madrugada travestida de sono, que muito mais tarde, se suicidaria junto à baía. Tínhamos medo da noite. Tínhamos medo do sofrimento que depois da tarde se despedia do silêncio que a cada segundo que passava, que a cada minuto de sofrimento, aparecia à janela do cansaço.

Sabíamos que os cabelos eram apenas pequenas sombras que todos os dias iam ao rio em busca da primeira lágrima da manhã. Um dia, junto ao mar, cresceu uma pequeníssima lâmina de sangue, uma ferida que ainda hoje sangra, que ainda hoje dorme numa cadeira que ainda hoje inventa sorrisos no espelho da sanzala.

Assim que acordávamos, ouvíamos o sono que regressava da tempestade deixada ao abandono durante a noite, todos os barcos tinham no olhar um enorme sofrimento que aos poucos dava à costa e contra os rochedos se transformavam em tiras de sono. O corpo começava a desfalecer. O corpo começava em putrefacção e o intenso cheiro a gladíolos era tal que quase adivinhava-se o silêncio que hoje pertence aos grandes petroleiros da cidade.

A cidade envelhecia. O corpo, sangrando como uma velha fonte da aldeia, tinha nas mãos as cinzas dos ossos desfigurados pelos comestíveis cogumelos que só os poemas conseguiam construir no profundo mar das marés em delírio; o corpo sangrava porque existia sobre a pele a fragância laminada de uma tempestade perfeita, depois, eram as cadeiras da cozinha em pequenos gritos que apenas eram sentidos pelos velhos azulejos que numa qualquer sexta-feira alguém deixou ficar debaixo da árvore junto à porta.

Do cabelo, alguns silêncios despertavam. A tinta que às vezes escorria no seu rosto era o principal motivo de se esconder no quarto e desligar o interruptor do sonho que trazia junto ao peito. Todos os brancos cabelos que ela tinha um dia tinha prometido ao criador, hoje eram apenas vestígios de lágrimas e silêncios.

Sabia-se que a morte tinha descido à velha cidade.

Os cabelos brancos tinham, finalmente, encontrado a liberdade.

E do cabelo, alguns silêncios despertavam…

 

 

Alijó, 19/06/2022

Francisco Luís Fontinha


24.07.21

Das asas pigmentadas de silêncio, ouviam-se os uivos apitos que voavam sobre os socalcos pincelados de sombras e sonoras alegrias, que de vez em quando, ao longe, de um barco, às vezes assombrado, alicerçava a tristeza da partida,

Começa o dia na mão dele, de entre os dedos carrancudos, o cigarro avermelhava-se entre cinzas e lágrimas, chamavam-lhe; a saudade.

Partiu sem dizer adeus, nem um beijo, nenhum amigo presente na fala da sua sombra, quando se adivinhava que a morte é apenas uma viagem até ao infinito, de voos baixos, de ziguezague em ziguezague, de socalco a socalco, uma mísera nuvem de espuma brincava na sua mão,

Tinha medo,

Às vezes travestia-se de homem, outras, nem muitas, aparecia nas estantes amorfas dos livros de poesia,

O poema morrer e, ele nem sempre sabia o que significava a morte.

A morte é uma merda, dizia-lhe o pai pássaro, outro, o espantalho, costumava escrever nas rochas do Douro, sabes, meu filho, o cancro é uma merda,

A viagem, o vento levava-o pelas sanzalas da infância, num orgulho que só ele sabia descrever, sentava-se junto ao mar, puxava de um cigarro reutilizado do dia anterior e, em pequenos silêncios segredava ao pássaro alegria; sabes? Sou a criança mais feliz de Luanda.

Todos tínhamos nas mãos o cansaço das equações, das ínfimas matrizes que sobre o caderno adormeciam como crianças pintadas na tela da Mutamba,

Às vezes dá-me sono as palavras tuas,

Nunca soube voar.

Vestia uns calções, sentava-se nas sandálias de couro e, começava a correr até ao Mussulo, desagregado da saliva entre apitos e rumores; um dia vou regressar, um dia,

Nunca regressei.

Hoje, acordei abraçado à mangueira da minha infância, junto a mim, o triciclo da saudade e, mais além, as cartas que nunca tive coragem de te escrever, sabes, meu amor, as palavras parecem-me falsas alegrias, arrotos anónimos nas mãos do carrasco.

As espingardas vomitavam sílabas de azoto, o soldado-menino, escondia-se debaixo do embondeiro mais velho da planície, algures, outro menino-soldado, deslaço devido à preguiça, rebolava-se ribanceira abaixo, até que alguém lhe dizia; oh menino, a espingarda? E, ele, timidamente, respondia,

Fugiu, meu senhor, fugiu como uma bala em direcção ao nada.

Nunca soube voar. Aprendi as primeiras letras e números debaixo de um zincado telho telhado, talvez hoje, seja apenas uma igreja imaginária, apenas sombra, apenas nada.

O poema voava na sua mão. Entre os dedos, desenhava-lhe os seios colocando-lhes pequenas aspas, ou inúmeras saliências, ou apenas nada.

Nada tudo dentro de uma louca equação de areia. O barco recheado de fumo, levante e de um outro adeus; amanhã saberei o seu nome.

Amanhã, meu amor.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 24/07/2021

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub