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francisco luís fontinha

Nunca vi o mar, A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu... francisco luís fontinha.

francisco luís fontinha

Nunca vi o mar, A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu... francisco luís fontinha.


15.10.22

Poema – fotografia com palavras. Morreu de saudade, o poeta pega no bisturi da paixão e disseca a manhã que acaba de acordar. Dos lábios, em pequeno jeito, retira todos os beijos e poisa-os cuidadosamente sobre o papel amarrotado que o luar trouxe até à sua mão.

Depois de radiografar todas as sílabas, retiradas todas as vírgulas e pontos finais, o poeta, pega nos tristes parêntesis e coloca-os, não sobre o papel amarrotados, mas sim sobre a secretária onde dormem os livros Lobo Antunes, AL Berto, Pacheco, Cesariny, Cruzeiro Seixas e de um tal Fontinha, mas quanto a este último, como dizem que é um pouco louco, o narrador nunca tem a certeza se os livros deste, quatro e milhares de publicações no blog Cachimbo de Água, ainda jazem na dita secretária; um dia estão aqui, no outro, ali, e às vezes, por aí.

O bisturi da paixão entre traços pincelados de silêncio e sombras de desejo, em pequenas quadrículas, começa por dissociar os lindos olhos da manhã que acaba de acordar das pestanas cinzentas da neblina em fuga; dos olhos, o poeta, retira as imagens de um qualquer luar que uma qualquer noite poisou sobre o mar, porque há sempre um rio que corre para o mar, uma ribeira que correr para um rio, e claro, há sempre um corpo no bisturi do poeta.

O sorriso da manhã que acaba de acordar, agora já separado dos lábios, e acreditando que o poeta segue todos os procedimentos de uma dissecação, suspende-se na janela do sonho, que por enquanto, ainda pertence ao poema. E neste momento, o poeta ainda não sabe que este sorriso lhe pertence.

Nos seios, o bisturi da paixão, em pequenas incisões, deixa sobre eles a última vontade do poeta, e o poeta, sem dar-se conta, transporta na mão pequenos pedacinhos de saliva que sobejaram do beijo anteriormente retirado; somos instantes, pensou ele.

Mas nem só de seios é constituída a manhã que acaba de acordar, e continuando a dissecação do poema, o poeta dissecador, num movimento de dezoito graus Norte, coloca o olhar nas coxas silenciadas pela alvorada, enquanto as estrelas, em pernoitada conferencia, tentam chegar a consenso; dormir ou azucrinar a paciência ao poeta. Por unanimidade, resolvem azucrinar a paciência do dito.

Dito isto, o bisturi da paixão separa as pequenas gotículas de prazer alicerçadas à pele lisa e desejada que cobrem a manhã que acaba de acordar e num ápice, como se acabasse de desenhar um silenciado orgasmo no distante luar que acabou de acordar, conta-as, cataloga-as, e depois coloca-as dentro de um pequeno frasco onde já existiam três pedacinhos de sémen, uma madrugada que se tinha suicidado junto ao mar, e claro, o rio que tinha fugido da montanha.

O poema deixou de pertencer ao poeta e é imagem desassossegada do dissecador que um dia dirá que

Fui muito feliz sobre esta pedra cinzenta.

Ou, existirá sempre um pedacinho de mel nos lábios da manhã.

E como o poema é uma fotografia com palavras, onde um corpo vacila sobre a ponte que apenas o sonho consegue pintar nas nuvens cinzentas que às vezes poisam sobre o poeta, há um sorriso que aos poucos se abraça a esta pequena fotografia e há palavras que partem e nunca mais regressam. E há silêncios que se tocam sem perceberem que a paixão, depois de descartado o bisturi, pois já não é necessário, se transformam em desejo, depois em uno corpo crucificado na maré dos sonhos envenenados.

Quando perguntam ao poeta o que pensa da manhã que acaba de acordar e qual o resultado da dissecação, este é sorrisos amortecidos, responde que… não penso nada e quanto à dissecação:

Depois de dissecado o poema e analisado, concluo que o dito morreu de saudade.

 

Saudade – quando no mar desenhado na alcofa de uma madrugada de cacimbo, sons de um pequeno rádio a pilhas dança sobre os olhos verdes de um miúdo em soluços depois de perceber que do tecto caem pedacinhos de geada.

E quando o paquete do regresso entra Tejo adentro, o miúdo da alcofa vê sentado junto à Torre de Belém um rapaz tímido, abraçado ao medo, que numa das mãos tem um livro e na outra cigarros que o acompanharão até aos dias de hoje.

O barco aos poucos aproxima-se da cidade, e o miúdo com a alegria de um miúdo que acaba de acordar, sorri

Pai, um machimbombo!

Autocarro, filho. Autocarro.

Desde então, nunca mais consegui assassinar a saudade.

E já agora, caro leitor, qual será a pena para um assassino em série de saudades?

A saudade vai. A saudade vem.

O tempo passa.

Os machimbombos agora são autocarros, e um amigo segreda-me que por eu ter nascido em Luanda, sou Calcinha.

Autocarro, filho. Autocarro.

 

O poema é uma fotografia com palavras. O poema é a imagem que apenas o desejo consegue desenhar num corpo em fúria. O poema é silêncio. O poema é paixão. O poema é tudo e não é nada. O poema é um pedacinho de mel. O poema é um pedacinho de mar. O poema és tu, manhã que acaba de acordar.

 

 

Alijó, 15/10/2022

Francisco Luís Fontinha


02.09.22

Enquanto lês,

Desenhas na planície

As amendoeiras em flor,

Enquanto beijas,

 

Escreves na alvorada

Suspiros de amor,

Enquanto danças,

Abraças-te à madrugada…

 

E percebes que a vida é uma fotografia de nada,

E percebes que enquanto lês,

O teu corpo voa…

Os teus cabelos voam,

 

Os teus olhos voam…

E enquanto lês,

O teu corpo é a almofada

Que apenas o poeta sabe deitar a cabeça…e adormecer.

 

 

Alijó, 02/09/2022

Francisco Luís Fontinha


03.07.22

Depois, tínhamos de inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar pequeníssimas flores em papel, diga-se; tínhamos trazido da antiga ilha da solidão todos os leitos do amor proibido. Nas ruas da cidade, ouviam-se os gritos dos cacilheiros que durante o dia transformavam o tejo em pequenas estradas de transeuntes e, sob o viaduto em Cais do Sodré, putas finas guerreavam-se por cinquenta escudos.

O sono, que de algibeira em algibeira, de lapela em lapela, desenhava-se no pavimento lamacento em pequenas vozes sinusoidais e ao fim de alguns gritos e gemidos, acabava sempre por regressar a uma Belém envenenada pelos putos em busca de sexo e depois de alguns escudos, escondiam-se rio adentro como que crianças em fuga da literatura que nesta ou naquela rua, se vendia a preço de saldo.

Uma noite mergulhei no poema da saudade, acreditando que depois do sono, acordarias sobre as lâminas do medo, mas mal visto, nada poderia na altura vaticinar que as janelas do teu olhar, hoje, sejam apenas cacos e pequenas migalhas.

O poema, às vezes, enquanto o poeta fumava cigarros de luz, mergulhava no rio e, ao longe, na varanda de um paquete que começava, aos poucos, em pequenas manobras, a aproximar-se de terra, mergulhava e só voltava depois de longas horas de espera, onde cadeiras e mesas já dormiam.

Hoje, ainda hoje, percebo que o poeta que sentado na margem do rio fumava cigarros de luz e o menino que na varanda do paquete via uma cidade imensa a entrar-lhe olhos adentro, eram um só; eu.

Anos depois, a cidade transformou-se num imenso sono de meninos em calções, sobre a mesa, o punhal com que ela numa noite inventada para a ocasião, espetou no peito do poeta, que ontem, sabia onde habitava o velho poema, e hoje, percebe que esse velho, que às vezes, vestido de marinheiro, pede esmola no musseque, deixou de pertencer aos jardins floridos do sonho.

Bebiam-se shots de fumo que apenas o cacimbo sabia onde se escondiam, depois do sexo, porque a cidade, aos poucos, começava a desaparecer do espelho tricolor da madrugada; e depois da chuva, o cheiro intenso da terra queimada. Levantava as mãos a Deus e agradecia por mais um dia que tinha terminado, e ele, ainda, mesmo a muito custo, se encontrava vivo e de boa saúde.

Depois, o velho poeta morreu numa noite de orvalho, mas deixando de acreditar no desejo, sabia que as margaridas que brincavam no jardim do sono, um dia, regressariam a mim. E hoje guardo com amor a pequena sílaba que ele me deixou de recordação e em testamento.

Depois, tínhamos de inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar pequeníssimas flores em papel, e mesmo assim, o puto trocava notas de cem escudos por ninharias que hoje habitam a casa das abelhas em flor.

E sempre que ele cerrava os olhos, via o imenso mar a entrar musseque adentro como o paquete, em pequenos roncos, atravessou o tejo até ao cais de desembarque e desfaleceu sem que ninguém o tenha, até hoje, ressuscitado.

Depois, morreste-me.

Depois, morri nas tuas mãos.

E sempre que invento o sono, vejo um musseque a entrar dentro do meu corpo como se fosse uma flecha envenenada, como se fosse um poema em delírio.

 

 

 

Alijó, 3/07/2022

Francisco Luís Fontinha


08.05.22

Descia a calçada descalça

Dentro da sombra imanada da solidão,

Descia a calçada envenenada

Pelas rosas do meu jardim,

Descia a calçada descalça

Acompanhada pelo perfume do Verão,

Descia a calçada cansada,

Cansada de tanta paixão,

 

Descia a calçada das estrelas

Como se o sopro da manhã

Se levantasse do chão;

Descia a calçada madrugada

Enquanto o enforcado poeta

Escrevia na mão…

Enquanto a desgraçada calçada

Morria de paixão.

 

Descia a calçada descalça

A menina das planícies além-mar,

Trazia um barco suspenso na saia

E um marinheiro acorrentado aos lábios…

Descia a calçada descalça

A menina luar,

Sem perceber que esta calçada

É apenas um pássaro de voar.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 08/05/2022


03.05.22

Dos beijos ensonados

Às sílabas envergonhadas,

Dos pássaros cansados

Às tristes madrugadas,

Dos montes mimados

Às tardes revoltadas…

Da triste saudade

À misera esperança sem nome;

Do vinho martelado

Às poucas cartas que enviei,

 

À verdade,

À fome,

Ao poema que assassinei…

Do meu corpo enforcado

Às lágrimas que chorei,

Do vento,

Da solidão

E de todo o sofrimento…

E de todo o pão.

À chuva miudinha de Luanda,

 

Aos cheiros do amanhecer,

À fogueira…

Às espingardas sem coração.

Ao samba,

Ao prazer,

Ao uísque a bebedeira

Quando a noite parece esquecer,

Quando a noite parece morrer…

E o poeta dos beijos ensonados

Acredita em versos de dizer.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 03/05/2022

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