Nunca percebi o que fazem estes crucifixos suspensos nas feias paredes desta espelunca com clarabóia para a cidade, depois do sexo, quase sempre, um cigarro se suicidava no segundo andar e do quarto ao lado, em pequenas frases de final de tarde, chegavam-me os tristes gemidos dos corpos embebidos no fenol da solidão. Pela janela entreaberta, regressavam as dálias e margaridas que alguém esqueceu na paragem do autocarro.
Desenha-me!
Escrevo-te deste alegre silêncio sabendo que tens na janela do teu olhar as sombras que dormem sobre mim, escrevo-te deste longínquo continente para que percebas que enquanto estes crucifixos habitarem esta espelunca, e quando me pedes para desenhar-te,
Invento as larvas que roubam as palavras que semeio no teu peito, e nunca vais perceber porque fugiram as acácias da minha mão.
Alegra-te meu rapaz,
Amanhã há caracóis.
E enquanto estes crucifixos habitarem esta espelunca, o teu filho não saberá que nos barcos, um dia, o pai escondeu as escadas de acesso ao sótão, depois, tínhamos de caminhar até à estação mais próxima,
Estou grávida,
Ontem,
E víamos o sol a esconder-se na montanha,
Pensas em quê?
Amanhã, filho…
E sabíamos que aquela montanha tinha no peito o maior luar de Agosto, depois desenhava-te enquanto o teu corpo se escondia nos cobertores do silêncio, e imagina, quando percebeu que ia ser pai, puxou de um cigarro e em pequenos sorrisos,
Adormeceu na paragem do autocarro,
O machimbombo afrouxou, e num passo de esgrima, ficou acorrentado até aos dentes, nos braços, trazia as cordas com que às vezes utilizava para subir à montanha, e desta, conseguia ver o filho deitado sobre a cama rabugenta e infestada se sémen que da tarde tinha adormecido sem compreender que alguns milímetros têm vida, como os pássaros, como as dálias e as margaridas,
Sorrisos teus até aos lábios.
Olhou-os e benzeu-se. E víamos o sol a esconder-se na montanha, pensas em quê?
Amanhã, filho…
Em gritos, que não pensava, que não sabia onde tinha esquecido os cigarros prateados e que às vezes utilizava para carregar a espingarda da insónia, mas depois lembrou-se que dos milímetros silêncios do filho, tinha escutado o uivo do Ujo, até que a morte os levou para aquele triste e caquéctico sótão, onde além deles, habitavam borboletas, ratazanas e teias-de-aranha…
Somos só nós a partir de hoje,
E o pôr-do-sol deixará nos teus olhos as estórias das noites junto ao rio, e o cansaço acorrentou-o à ponte metálica que hoje dorme neste labirinto de livros, e nas pálpebras descobriu as insónias da manhã,
Um dia, um dia descerão dessa parede recheada de frestas todas as fotografias que deambulam pela casa, e esse milímetro de vida,
Somos só nós a partir de hoje e algumas teias-de-aranha,
Finou-se ao décimo quinto dia.
Amanhã, filho…
Nunca percebi o que fazem estes crucifixos suspensos nas feias paredes desta espelunca com clarabóia para a cidade, mas sei que lá longe há um rio que nos olha e nos quer levar para o mar.
E no mar, far-se-á homem como todos os milímetros de vida.
Alijó, 18/10/2022
Francisco Luís Fontinha
(ficção)